SONHOS, DÚVIDAS, DICIONÁRIO e FRONHAS

Os jovens do meu tempo eram muito sonhadores, uns queriam estudar e ser doutor, outros queriam plantar um roçado com tantos litros de milho, feijão e algodão, tirar uma boa safra, comprar uma bicicleta Gulliver ou Mercsuwiss, ou ser motoristas para ganhar as estradas pilotando um caminhão, outros, ainda, queriam viajar para o Rio de Janeiro e, eu queria ser padre. Na minha escolha, somente uma situação me fazia refletir muito, o tal do celibato, padre não pode se casar. E, eu sonhava também em me casar e ter uma família. Confesso, isso me preocupava bastante. Mas, fazer o quê, né? Ideal é ideal, não há um que não tenha os prós e os contras. Na verdade, penso hoje, este sonho seria meu ou dos meus pais, posto que, como todas as famílias daquele tempo, sonhavam ter um filho padre para servir a Deus. Sinceramente, eu estava encantado com a ideia, já me via como um interno do seminário. Já pensou? Eu, filho do Sebastião Silivero, chegando no Cantodoamaistempo usando aquela batinona preta, igual aos seminaristas de Groaíras, que vinham, nas férias, para suas casas e, na missa de domingo, lá estavam todos devidamente paramentados ajudando o Padre, na celebração da Santa Missa? Nossa! Ia ser um sucesso total, eu já imaginava o pessoal da vizinhança chegando, a mãe acompanhada da filharada e, às vezes até do marido, para ver o padre da “cumade” Lídia... O Dominguin! Quem diria, um dia desses era um menino “réi” se arrastando pelo chão e, hoje um padre!!! Só pensar naquelas cenas já me fazia o álter ego feliz e, alimentava, ainda mais, meu sonho! Mas, logo eu caia na realidade e percebia que as coisas não eram tão fáceis como no delírio. Antes eu tinha que entrar no Seminário e, aí existiam barreiras. Eu e a minha mãezinha, bem que tentamos, aliás, tentamos por duas vezes, mas esbarrávamos num detalhe essencial, a falta de dinheiro para comprar o enxoval e pagar algumas taxas de admissão e permanência. Todas as vezes que íamos, havia sempre algo que os nossos parcos recursos não alcançavam. Na última tentativa acordamos cedo e partimos a pé para Groaíras e, às 6h, estávamos na carroceria do caminhão do Neutinho, rumo à cidade de Sobral, onde ficava o seminário. Chegando lá, depois da explicação do padre que nos recebeu, percebemos que as “economias” que tínhamos eram infinitamente inferiores ao necessário e que, mais uma vez, não ia dar certo. Todavia, já que estávamos ali, colhemos todas as informações. Inclusive recebemos uma relação dos objetos que o candidato, obrigatoriamente, teria que apresentar para se inscrever. No documento, constando alguns regulamentos, estava a imperiosa lista do que era necessário trazer como enxoval, assim escrito, se não me falha a memória: 2 pijamas, 2 lençóis, 3 cuecas, 2 fronhas, 2 toalhas, escova, creme dental, pente... Coisas que, certamente, as pessoas da cidade usavam. Porque lá, onde morávamos, sequer sabíamos o que era. Foi aí que um objeto citado naquela lista me chamou a atenção. Fiquei calado para ver se alguém dava uma pista para eu descobrir o que era aquilo. A mamãe olhava a lista, balançava a cabeça e lamentava. - Não vai dar, meu filho! Bem, disso, eu já sabia. Mais uma vez, eu não ia conseguir realizar o sonho, meu e da minha família. Isso nos deixava muito tristes. E, eu particularmente, além de triste, estava inquieto com o tal do nome do objeto desconhecido da lista. Os outros, embora não fossem de uso regular por mim e por quase todos daquele lugar onde eu morava, eu até conhecia de vista ou de ouvi dizer: mas “fronha?”, o que era aquilo? Esperei chegar a Groaíras e, no Cantodoamaistempo, mas nada de aparecer alguém para esclarecer a minha dúvida. Eu, como um dos melhores alunos da Escola Paroquial Pio XII, era orgulhoso e não queria que soubessem da minha ignorância. Por isso não podia ficar perguntando a qualquer um. Muito menos às professoras. Tinha de descobrir e aprender sozinho ou questionando meus pais ou aos meus amigos João ou Zé Manu, ou Tatá. Ao chegar, fui correndo encontrar com João que era o que morava mais perto, há uns quinhentos metros da minha casa. Ao encontrá-lo já fui perguntando. - João, você sabe o que é fronha? - Fronha? – Indagou. - Sei lá o que é isso! - Pois é, rapaz, na relação do Seminário eles pedem duas fronhas, e eu não sei o que é isso. Eu disse isso passando para ele o papel. - Tem nada não, “Domingo”, vamos, então, a Groaíras, dar uma olhada no dicionário do Colégio? A nossa saudosa Escola Paroquial Pio XII, possuía, em sua modesta biblioteca, o único dicionário da cidade. Rumamos para a cidade, morávamos há poucos quilômetros. Já na escola, fomos informados que o diretor, Pe. Cleano, havia levado o dicionário para casa, pois precisava pesquisar umas palavras. - Sem problema, vamos à casa do padre? - Vamos! Respondi. Chegando lá e, com todo o cuidado, pois o padre era muito rigoroso e não gostava de ser incomodado. Tínhamos de ter a devida cautela para não chegar à sua casa nos seus horários de refeição, descanso, oração ou leitura. Sobrava pouco tempo para conseguirmos falar com ele ou com alguém de sua casa. Tomamos coragem e batemos palmas. Demorou um pouco, batemos de novo. Demorou mais um pouquinho, aí apareceu uma senhora que nós conhecíamos muito, era uma professora nossa, irmã do padre, uma pessoa muito boa, que sempre tinha atenção com a gente. - Pois não? O que vocês querem? - É que nós queríamos dar uma olhada no dicionário, mas ele não está no Colégio. Disseram que o Pe. Cleano o trouxe para casa. Necessitamos muito saber o que significa uma palavra que não estamos entendendo. - O Padre está viajando e o dicionário está no quarto dele e eu não posso mexer lá. - Tá bom! Então, depois a gente volta. E, já íamos saindo, quando ela, ao que parece, se compadeceu da gente e, curiosa, perguntou: - Qual é a palavra que vocês não sabem? Falamos quase ao mesmo tempo: - Fronha, professora, fronha! - Fronha? Vocês não sabem o que é uma fronha? - Não, professora, sabemos não. - Esperem aí. Entrou na casa e, em pouco tempo, estava de volta com um pano bordado com as iniciais R.C.M. que correspondiam às iniciais do nome do nosso inesquecível mestre, adornadas com ramalhetes de flores. - Fronha é isso aqui. Disse ela, mostrando-nos aquele pano em forma de saco e bordado. - Mas é um saco bordado? - Não, isto não é um saco, respondeu ela. Isto aqui é uma fronha e serve para colocar o travesseiro dentro. Danou-se! E, nós dois, mais uma vez, quase em uníssono: - Travesseiro! E o que é um travesseiro? Domingos Pascoal

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